Por José Luiz Quadros de Magalhões (Mestre e Doutor em Direito e Professor UFMG e PUC-MG) e Tatiana Ribeiro de Souza (Mestre e Doutora em Direito e Professora da UFOP)
Algumas
questões têm sido levantadas por opositores de movimentos sociais que defendem
a mobilização das pessoas e grupos organizados para legitimar uma transformação
de nosso sistema político por meio de uma Constituinte soberana (originária),
exclusiva (eleita exclusivamente para esta função) e temática (para fazer a
reforma política). Como já muitas vezes dito e escrito, isto é uma novidade,
pois as Constituintes originárias (soberanas), exclusivas (eleitas para fazer a
nova constituição e depois dissolvidas) nunca foram temáticas, pois não se
restringiram a um tema constitucional mas elaboraram uma nova Constituição.
Sobre a possibilidade da realização desta forma de Constituinte, também muito
já foi dito, e claro que, embora ainda não realizada, é perfeitamente aceitável
seguindo a lógica da Teoria da Constituição. Um poder que se legitima na
democracia, entendida como vontade popular expressa, pode ser limitado pelo
movimento democrático que o convoca e legitima ou autolimitar-se.
Um
pressuposto para compreensão da teoria do poder constituinte é analisar a
relação entre Democracia e Constituição. Constituição não é sinônimo de
democracia, o constitucionalismo não nasceu democrático e nasceu para trazer
segurança, inicialmente para homens, brancos e proprietários. A aproximação
entre democracia e constituição vêm da luta dos movimentos sociais, sindicatos,
trabalhadores na Europa do século XIX por direitos, entre estes, pelo direito
ao voto igualitário. Esta aproximação necessária entre constituição e
democracia significa transformação com menos risco. Em outras palavras, a
constituição representa a segurança (por meio da estabilidade, busca de
permanência e previsibilidade), enquanto a democracia representa a
transformação (que implica em risco, uma vez que ameaça a estabilidade imposta
pela constituição). Todavia, o risco é inevitável nas sociedades que buscam
liberdade e democracia. Logo, Constituição democrática ou Democracia
constitucional significa transformação com respeito a um núcleo duro de
direitos que não podem ser tocados pelos poderes constituídos.
A teoria do poder
constituinte também prevê um poder reformador (por meio de emenda ou revisão)
para que o texto possa acompanhar as transformações sociais, culturais,
econômicas, políticas (etc). Sobre tal característica do poder constituinte
devemos considerar dois aspectos, sendo um teórico (que diz respeito aos
limites do poder reformador) e um fático (que diz respeito à desconexão entre
os interesses defendidos pelos parlamentares e os interesses do povo, que
deveria estar por eles representados).
Quanto aos aspectos
teóricos, o poder de reforma à constituição deverá ser limitado, significando
que a vontade da maioria (parlamentar), que deveria expressar a vontade da
maioria da população, pode promover muitas mudanças, mas encontra limites
constitucionais em determinados temas, princípios, direitos, que são imutáveis
pelos mecanismos formais estabelecidos pela própria constituição. Nisto reside
um ponto essencial do poder reformador em uma teoria da constituição
(democrática representativa): não é possível romper formalmente com a Constituição,
só modifica-la com limites. Desta ideia decorre outra ideia muito importante:
como o texto não pode pretender ser eterno, e como a tensão entre democracia
(transformação) e constituição (segurança) é gerada pelos limites que a
constituição estabelece para as transformações (que surgem de maiorias), a
única possibilidade de ruptura com a Constituição é por meio da democracia em
sua expressão não representativa, ou seja, popular. Isto não é novidade, e gerações
desde a Revolução Francesa (podemos falar em alguma medida da Inglaterra se
considerarmos a participação de igualitaristas depois traídos pelos burgueses)
sabem o que é um movimento popular democrático de ruptura. Claro também é, e a
história tem nos mostrado, que os riscos sempre existiram, e que muitas vezes
as vontades de poucos têm prevalecido sobre os interesses de muitos. A crise
grave de representatividade das democracias "liberais" representativas em
vários países do mundo tem mostrado o distanciamento das instituições que
deveriam viabilizar a democracia, das vontades populares. Vale lembrar ainda a
enorme concentração do poder econômico, e com isto dos meios de comunicação
social, que têm em diversos países, manipulado a opinião pública, distorcendo e
encobrindo fatos. Isto inviabiliza qualquer debate público livre e democrático,
fundado sobre informações distorcidas, pautas artificialmente criadas e
mentiras. Ver a nossa democracia representativa como expressão da vontade
popular talvez seja incorreto.
Postas
estas considerações iniciais vejamos alguns argumentos defendidos contra o
plebiscito popular para a realização de uma constituinte soberana, exclusiva,
para a reforma política (temática).
Primeira
questão levantada é a informalidade do plebiscito. Ora, esta é sua principal
característica legitimadora. Não é admissível a possibilidade de ruptura com a
Constituição ou parte dela por meios formais. Esta, como dito acima é a
essência da ideia de segurança oferecida pela constituição. A ruptura só é
possível com a democracia. A ideia do plebiscito popular é permitir a gradual
mobilização da sociedade em torno do tema, pretendendo chegar a um momento onde
esta vontade popular (a mobilização popular) se torne irresistível. Claro,
portanto, que deste plebiscito não se espera a transformação do sistema
político de forma soberana imediatamente: é um processo. Um plebiscito formal
seria golpe.
O
movimento não pretende revogar a atual Constituição, mas, como assistimos
recentemente na Bolívia e no Equador, um movimento popular democrático, uma
ampla mobilização popular pode gerar constituições radicalmente democráticas
rompendo com séculos de dominação e subalternização, assim como de um falso
jogo "democrático parlamentar" que encobria parlamentos e governo que sempre
fizeram o jogo de elites econômicas e étnicas nestes países.
Em
nenhum momento se esperou ou se espera uma situação ideal de deliberação. Trata-se
de conflito, e por isto a proposta do plebiscito visa envolver mais pessoas,
para movimentar a sociedade em torno do debate. Por isto ouvir a sociedade a
respeito do que se pretende mudar.
O
movimento em torno do plebiscito popular se fundamenta na ideia da inexistência
de representatividade em nosso parlamento, apoiado em dados expressivos,
relativos a composição do Congresso Nacional[1].
Logo, como esperar quórum de 3/5 de um parlamento que não nos representa? De um
parlamento onde cerca de 40% dos representantes são de famílias tradicionais,
algumas no poder desde 1822? Incompreensível esta afirmação.
O
texto apresentado por renomados e importantes teóricos do Direito brasileiro
apresenta uma revelação interessante. É escrito a partir de uma perigosa
premissa moderna que podemos expressar no dispositivo "nós x eles". Assim
encontramos expressões como "eles" apelam para a judicialização; "eles" passam
a defender reformas contra a constituição; "eles" não acreditam na Constituição;
"a Constituição deles"; ou então, encontramos frases como "o Brasil fez uma
escolha por meio de uma Constituinte democrática que produziu uma Constituição
democrática"; "nossas" escolhas foram se atualizando; "sabemos o que queremos e
o que não queremos". Ora, quem é o "nós" legitimo; quem é o "Brasil" que fez
esta escolha? A "nação"? A maioria? Quem são o "eles" ilegítimo e ingênuo? A
sociedade civil? Os sindicatos? Os movimentos sociais?
Não
se defende em nenhum momento zerar tudo pois isto seria uma impossibilidade
histórica. O presente é fruto das contradições e lutas do passado assim como o
futuro estará inevitavelmente impregnado de presente, das lutas que realizamos
pela democracia e por direitos para todos que os movimentos sociais e
sindicatos realizam no presente. Não é compreensível a acusação de que "eles"
precisam superar esta dicotomia, não acreditam na democracia. Ora, o que se
está questionando é o fato de que os representantes e os mecanismos de
representação não são suficientemente democráticos, ou pouco democráticos. O
que se pretende é aperfeiçoar a democracia, o que se pretende é mais
participação.
Incompreensível
a afirmação de que "eles" defendem uma Constituição isenta da política e do
político. Ora, o movimento é político, trata-se mobilização popular, movimentos
sociais. A nomeação do "eles" de "esquerdismo" é um passo perigoso para ocultar
toda a diversidade do movimento e classifica-lo, reduzi-lo e eliminá-lo. Esta
técnica a história já nos mostrou, lamentavelmente, algumas vezes.
O
que se pretende, ao mobilizar as pessoas, os movimentos sociais, em torno do
debate do tema é justamente buscar a mudança da Constituição e as leis a partir
da mobilização popular. De uma revolução surgem novas leis e uma nova
Constituição. Trata-se da política impulsionando a transformação e não o
contrário. Neste ponto o texto se mostra bastante contraditório com o que
afirma antes.
No
texto ainda encontramos a estranha afirmativa que "eles" os defensores da tese,
"não compreendem bem a história". Interessante esta afirmativa, pois, "nós", os
que escrevem o texto, compreendem bem a história. Quem tem o verdadeiro saber.
Ainda há a afirmativa que os movimentos sociais, sindicatos, sociedade civil
organizada, pessoas que participam pelo movimento por uma constituinte
exclusiva, soberana e temática, são (eles), ingênuos e equivocados.
Interessante isto: "nós" (quem?) sabemos história, não somos ingênuos, sabemos
a verdade, não somos equivocados, enquanto "eles" não sabem a história, são
ingênuos e equivocados, numa simplificação da enorme diversidade dos movimentos
sociais, estudantis, sindicatos, envolvidos no processo de luta por
transformação social.
Finalmente,
uma última interessante afirmativa: dissertações e teses sobre o poder
constituinte não servem para nada. Segundo os autores foram escritas centenas
de teses sobre poder constituinte, sobre as regras do jogo, sobre a democracia
e o povo ignora: "Fora com a literatura que prega a democracia; fora com as
aulas de direito constitucional" afirma o texto. Chegamos então ao limite do
absurdo: a democracia se encontra nos conceitos acadêmicos. Esta informação
talvez seja a mais importante do texto. Precisamos fazer uma autocritica.
Talvez o problema seja uma academia (no campo do direito) fechada em si mesma,
que pensa muito mais o nosso direito e nossa democracia a partir de autores
norte-americanos, alemães e franceses e por vezes ignora ou esquece as lutas
sociais, os movimentos sociais, nossa realidade social, assim como as relações
de nosso parlamento com seus representados.
[1] Informações
no site do Plebiscito Popular.