Por Henrique da Rosa Ziesemer, membro do MP-SC, Mestre em Direito, especialista em Processo Penal, Professor da Escola do MP-SC e também membro do GNMP.
No afã de
dar celeridade aos ritos processuais, como se isso fosse o problema da lentidão
da prestação jurisdicional, o legislador houve por bem alterar os procedimentos
criminais previstos no Código de Processo Penal. E assim o fez, por meio da lei
11.719/2008, que “dinamizou” toda a instrução, prestação, enfim, parece que
resolveu a morosidade da Justiça.
Claro que as
leis processuais devem se adequar, mas não podemos tratá-las com afronta às
garantias constitucionais, ao argumento de tornar a justiça mais célere. Se
existem princípios e regras constitucionalmente estabelecidas, estas hão de ser
respeitadas, pois ao contrário, abrem-se portas para várias atrocidades, sempre
com o mesmo argumento de fundo (falácia), ou seja: “vamos aprimorar isso, ou
aquilo. A lei do jeito que está é um entrave para tal objetivo”. Ah, nem
Maquiavel, tão injustamente criticado, se orgulharia da criatividade
legislativa brasileira.
Mas enfim, a
citada lei, que estabelece novos ritos no esfacelado e esfarrapado Processo
Penal Brasileiro, assim dispõe:
Art. 397.
Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o
juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: (Redação dada pela
Lei nº 11.719, de 2008).
I – a
existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; (Incluído pela Lei
nº 11.719, de 2008).
II – a
existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo
inimputabilidade; (Incluído pela Lei
nº 11.719, de 2008).
III – que o
fato narrado evidentemente não constitui crime; ou (Incluído pela Lei
nº 11.719, de 2008).
IV – extinta
a punibilidade do agente. (Incluído pela Lei
nº 11.719, de 2008).
Trata-se da
fase pós recebimento (formal) da denúncia, onde o acusado foi citado, e
apresentou sua defesa, e tudo o que lhe interessa. Pois bem, conforme diz o
art. 397 e seus incisos, depois de apresentada a defesa, o juiz deverá
absolver sumariamente o acusado, nas citadas hipóteses.
Mas, como
assim, absolver? Em uma constituição onde vigora o princípio da paridade de
armas, o sistema acusatório, e o princípio do contraditório, como pode o juiz
absolver alguém, entrar no mérito de uma acusação, sem que a outra parte (parte
ativa) possa, ao menos, ter a chance de comprovar o que alega (na denúncia), de
ouvir suas testemunhas, de contradizer o que a parte passiva alegou, que a levara
à absolvição?
Observemos
com senso crítico: 1- A denúncia é formulada com base no
Inquérito Policial, ou outras peças de informação,tudo até então sem
contraditório, pois não passam esses procedimentos de mera coleta de
elementos, até porque não têm o condão de restringir direitos ou aplicar
penalidades. 2- Quando do oferecimento da denúncia, o Ministério
Público apresenta ao juiz as peças produzidas, pedindo que o Juiz as receba,
que deflagre o devido processo legal, e que tenha a chance de provar o que
alega. 3- O acusado é citado e apresenta sua resposta, mas neste
momento, ao acusador ainda não foi dada a chance de provar o que alega. 4-
O Juiz, considerando o art. 397, e sem dar ao Ministério Público a réplica (por
ausência de previsão legal), absolve o denunciado, sem que o acusador tenha a
mínima chance de apresentar seus argumentos probatórios, tudo com base em um
inquérito policial, ou peças de informação.
Portanto, a
lei em comento ofende preceitos estabelecidos na Constituição Federal, além de
colidir com o próprio Código de Processo Penal.
Diz a Constituição Federal:
Art. 129.
São funções institucionais do Ministério Público:
I –
promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
O referido
artigo consagra o sistema acusatório. Agora, conjuguemos este dispositivo
constitucional, com o Código de Processo Penal:
Art. 257. Ao
Ministério Público cabe: (Redação dada pela
Lei nº 11.719, de 2008).
I –
promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida neste
Código; e (Incluído pela Lei
nº 11.719, de 2008).
Art. 156. A
prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de
ofício: (Redação dada pela
Lei nº 11.690, de 2008)
Ora, se cabe
ao Ministério Público promover a ação penal, e este tem o ônus/direito de
provar o que alega, a contrário senso, à letra do art. 397, em caso de
absolvição sumária, fica impedido de fazê-lo.
Soa
igualmente incoerente que, pela letra da lei, art. 155 do Código de Processo
Penal, conjugado com o art. 397 do mesmo codex, que o Juiz não possa
fundamentar sua decisão (e não absolvição somente) “exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação”, mas possa absolver pelo
art. 397. Então, se a denúncia é formulada com base na investigação, e o réu
junta documentos que não são oportunizados vista ao Ministério Público, como
aquele pode ser absolvido sumariamente? Além de haver uma incongruência legal,
há ofensa ao contraditório, sistema acusatório, e devido processo legal.
A redação do
art. 5º, LV, é claríssima:
LV – aos
litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes;
No caso da
ação penal, há o litígio, há litigantes, mas não é assegurado o contraditório
pelo art. 397, uma vez que dentro da linha de raciocínio, se na defesa o
acusado apresenta fator que modifique, extinga, ou impeça o direito do titular
da ação (direito de punir), é evidente que este deva se pronunciar antes do
juiz “decidir” (no caso, absolver sumariamente), ou então, há evidente
cerceamento de acusação, e do devido processo legal.
Portanto, a
par de haver manifesta inconstitucionalidade no rito, deve-se lançar mão da
interpretação conforme, abrindo-se vista ao acusador, para que se manifeste
sobre os argumentos e documentos trazidos pelo acusado, sob pena de quebra de
paridade de armas, e afronta ao contraditório e sistema acusatório. Até o
oferecimento da denúncia não há provas, pois esta é produzida sob o
contraditório judicial. Portanto, equivocado o rito ao prever uma absolvição
sem provas, e sem contraditório.
Como dito
acima, a edição de leis ao arrepio de princípios constitucionais tão duramente
conquistados, enfraquecem a ordem jurídica, desequilibrando as partes
envolvidas. Se por um lado o “litigante” tem direito à ampla defesa (e não
poderia deixar de ser diferente), deve haver regras para tanto, e uma vez
colocada a relação jurídica de acusador e acusado, este deve ter o direito de
provar, e aquele, o direito de se defender. Mas o direito de se defender não
significa enfraquecer o direito de acusar e provar.