Pelo Professor Doutor David Sanchez Rubio (Universidad de Sevilla). Tradução de Helena Henkin.
1.
Introdução
No presente artigo tentaremos discorrer e refletir um
pouco sobre as ideias de democracia e de direitos humanos que praticamos em
nosso cotidiano e que formam parte da cultura popular difundida pelos meios de
comunicação e pelas instâncias políticas tradicionais de representação
(partidos políticos, sindicatos, poderes legislativo, executivo, etc.). Como
pano de fundo, sempre condicionado pelo marco e pelo contexto histórico-social
e cultural em que nos movemos, se levará em conta a situação em que se
encontram os processos de democratização no Estado espanhol e alguns conceitos
sobre democracia a serem utilizados. Evidentemente, a mobilização cidadã do 15M
e/ou movimento dos indignados, juntamente com a realidade latino-americana, tão
presente em nossos trabalhos, servirão de inspiração.
O título do
texto está centrado tanto no conceito de democracia, como no de direitos
humanos, estes vistos, focados e entendidos a partir de uma perspectiva
crítica. Por isto, oesclarecimento
inicial parte da tentativa de explicitar algumas deficiências, defeitos e
falências, que ambas as figuras ( democracia e direitos humanos) possuem na
atualidade, devido ao fato de serem concebidassobre
lógicas insuficientes e estreitas em relação ao
reconhecimento e ao desenvolvimento do princípio moderno de agência humana,
entendido como a capacidade que o ser humano deve ter decrescer em auto-estima, autonomia,
e responsabilidade.[1]
Tudo o que possibilita as condições de realização do princípio de agência
humana está relacionado não só com a ideia dos direitos humanos, mas também com
a de democracia.¹
Neste sentido,
iremos oferecer uma espécie de definição do que entendemos por democracia, e
por direitos humanos:
a)
Por democracia concebemos não só
uma forma de governo, mas também um conjunto de ações, conceitos e mediações
que têm como objetivo possibilitar o exercício do poder do povo para o povo
(demos), através da luta, do protesto e da reivindicação dos membros de uma
comunidade ou sociedade.Com a democracia em voga, a cidadania deve
assumir sua responsabilidade e o dever de se autogovernar por seus próprios
meios.Todo ser humano deve participar diretamente
de tudo aquilo que o afeta no âmbito publico (e também no privado, mas agora
não iremos analisar este âmbito), sem que isto seja incompatível com o apoio
complementar de mecanismos de representação. Por isto, esta ideia de democracia
se opõe a qualquer descuido da democracia ou do povo,
que a restrinja, como única expressão de si mesma, nas mãos de especialistas ou
de um número limitado de cidadãos naqueles espaços onde as relações humanas são
desenvolvidas ecorrompidas em torno do âmbito
publico. Democracia entendida como prática plural de controle e exercício do
poder por parte de cidadãs/cidadãos soberan@s e como forma de vida, não somente
concebida como governabilidade.[2]
b)
Os direitos humanos serão aqui
situados em instâncias reivindicativas e em demandas mais ou menos
institucionalizadas que surgem de processos de abertura e consolidação de
espaços de luta pela dignidade humana. Neste sentido, direitos humanos podem
servir como instrumentos de controle contra os excessos de poder que impedem o
principio da agencia humana supramencionado, e em suas dimensões libidinais,
sexuais, étnicas, culturais, econômicas, e sociopolíticas; serão situados
também como bens jurídicos e não jurídicos que definem quais os meios aptos a
satisfazer as necessidades humanas.[3]
Partindo destas duas noções
de democracia e de direitos humanos, podemos considerar que em nossa cultura
cidadã predomina, partindo de um ponto de vista epistemológico, o denominado
por Edgar Morin de paradigma da simplicidade.[4]
Hegemonicamente existe uma racionalidade sobre a qual é gerado um imaginário
oficializado que tende a separar, reduzie e abstrair a tais níveis ambos os
conceitos (democracia e direitos humanos). No fim das contas, só saem
beneficiados por sua expansão determinados grupos de poder e uma determinada
ordem social suprema, controlada por uma lógica e uma dinâmica próprias do
capitalismo, machista, patriarcal e racista, as quais, através de uma
racionalidade instrumental e com o processo de mercantilização de todos os
espaços da vida, geram assimetrias sociais que matam e geram passividades.
Os efeitos que
essa racionalidade tem sobre o conjunto da sociedade, para nós são claros:
provoca n@s cidadãs e cidadãos uma perda de sua capacidade de julgamento
crítico da realidade e uma maior adesão às mensagens transmitidas pelos poderes
econômicos empresariais, dos bancos e dos partidos e peloconhecimento
institucionalizado nas instâncias estatais. Entre algumas das consequências
desta perda nos deparamos com uma atitude de indolência e de um conformismo
político que também se projeta sobre a ideia e a prática de direitos humanos
predominante. A complacência e o servilismo ante o
poder político que se circunscreve a determinados lugares sociais, termina por
despolitizar a cotidianidade dos cidadãos e por questionar ações e expressões
de reivindicação que, por estar fora do molde estabelecido, são denegridas e
desqualificadas ( tal como está acontecendo com o movimento dos indignados).
Primeiramente iremos nos
centrar no conceito de democracia, cuja única expressão costuma
circunscrever-se a manifestações eminentemente representativas, de caráter
formal, procedimental e controlado pelo sistema de partidos políticos. Em
segundo lugar, iremos falar sobre direitos humanos, cuja realidade se constrói
através de processos de desempoderamento humano em um contexto em que há
claramente uma ausência de cultura de direitos humanos e, não obstante, a pouca
que existe, se reduz a circuitos judiciais e procedimentais que fortalecem,
pela forma de serem concebidos, o abismo e a separação da teoria e da prática
de ambos. A perspectiva hegemônica acaba por ser estreita, jurídico-formal e
pós-violatória, de maneira a deixar a impressão de que os direitos humanos
somente têm importância a partir do momento em que são violados. Com isto, o
resultado é a invizibilização de outras dimensões consideradas elementares para
poder enfrentar essa separação entre o que se diz e o que se faz em matéria de
direitos humanos, tanto na esfera da cotidianidade, como nas esferas nacional e
internacional. Em ambos os casos, a tentativa será de oferecer noções mais
amplas complexas de democracia e de direitos humanos.
2.
Sobre democracia
Para Marcos
Roitman, dar à palavra democracia um significado faz parte de uma guerra
teórica e política pelo controle de todo o mundo.A
proposta hegemônica de quem tem mais poder possui um duplo objetivo:
a)Transformar-se em objeto de consumo social e b)
feito isto, projetar uma espécie de imagem para organizar a vida cotidiana.[5]
Nesse sentido, a ordem hegemônica é uma fábrica de significantes, e os meios de comunicação e centros especializados são
seuscentros de difusão. Através deles, hoje em dia estende-se e
expande-se uma ideia de que a democracia é um produto para o mercado, e por
isto seu uso tem de ser generalizado e de conhecimento de todos. Desta maneira todos
se sentem integrados, mesmo que estejam excluídos do real e efetivo exercício
político e democrático.A democracia tem de ser, para isto, uma
definição atrativa e fácil de digerir, útil para legitimar um sistema ao qual
não interessa que o povo tenha uma cultura ativa e participativa nos assuntos
públicos e de interesse comum.[6] O desejo de democracia supõe uma mensagem breve, curta, ao
alcance de todos, e elementar: deve encaixarcom uma sociedade de consumo, vivida no limite de um
individualismo extremo.Estrategicamente, somos lobotomizados através de
uma ideia estreita e simplificada de democracia que, de tanto ser repetida, nos
faz esquecer uma possível criticidade, e por fim a defendemos como se fosse a
única possível. Apesar de esta ser uma entre as muitas formas de se conceber e
praticar a democracia, sua extensão e hegemonia exclui e despreza outras
expressões mais diretas e participativas. Não há democracia para além desta.[7]
O próprio Roitman nos avisa
que com a democracia ocorre algo parecido com o discurso da “Coca-Cola”. Por
ser refrescante afirma acabar com a sede ao mesmo tempo em que se apresenta
como a centelha da vida. Mas se a tomamos, o discurso fracassa: não acaba com a
sede e muito menos acaba com a depressão, se estivermos tristes. Mas é
consumida como se obtivesse ambas as qualidades. Acabamos vivendo de forma
complacente com a enganação. Pois bem, o mesmo acontece com o conceito de
democracia representativa e com seus produtores. Impõe-se uma lógica de
consumo, tudo se centraliza na “festa” das eleições (nesse sentido são muitos
os políticos que afirmam que o voto é a festa da democracia, mais ainda, a raiz
do surgimento do movimento dos indignados) e tudo se reduz a um ritual
eleitoral onde são eleitos governantes. Vive-se em uma democracia real quando o
controle das instituições é alvo de competição e existe alternância de poder.
Em uma democracia que se circunscreve a uma técnica de governo para eleger a elite
representante e para legislar e administrar leis os resultados são manifestos:
o mundo das relações humanas torna-se despolitizado, mesmo estando estas
embebidas de relações de poder, e os seres humanos são isolados e desvinculados
da prática ativa e diária. Desta forma, os sujeitos soberanos desaparecem e a
cidadania política se desarticula. A democracia só
pode expressar-se procedimentalmente, e se configurar como um conjunto de
regras do jogo onde se fale de maiorias e minorias, poliarquias, consensos,
alternâncias, estabilidade e eleições. Mesmo assim, emerge como um ato de
regulaçãonormativa, como uma técnica procedimental para eleger elites que administram e gerem a razão do
Estado.[8]
Além disto, todos esses dispositivos simplificadores são
também expressão de uma racionalidade metonímica própria da cultura ocidental,
que confunde o todo pela parte e que, neste caso, absolutiza a democracia
representativa como a única e exclusiva versão verdadeira, real e possível.[9]
Daqui para frente faremos a tentativa de aprofundar o tema, com alguns exemplos
mais concretos e específicos que podem ilustrar a maneira como opera este
paradigma metonímico da simplicidade, que amputa o conceito de democracia,
excluindo uma maior riqueza de seu conteúdo, tanto na teoria como na prática, a
partir de quando não reconhece outras expressões e manifestações que enriquecem
sua realidade:
Nesse sentido, Edgar Morin
assinala que são três os princípios, que têm de ser concebidos de maneira
inter-relacionada e, com eles opera o paradigma da simplicidade contido na
racionalidade moderna que nós iremos projetar sobre o conceito de democracia:a) o
princípio de ruptura ou separação; b) o princípio da redução; y c) o princípio
da abstração, e seu complementar, o princípio da idealização.[10]A
seguir veremos como se opera cada um deles:
a) O
princípio de ruptura ou separação
O princípio de ruptura
funciona por meio de varias etapas: a) rompem-se os vínculos e as relações
entre os elementos ou fatores da realidade; b) dualiza-se e polariza-se a
realidade em pares dicotômicos ( por exemplo amigo/inimigo; masculino/feminino;
ganhador/perdedor, universal/particular; verdadeiro/falso; ciência/
conhecimento não científico; propriedade privada/ propriedade coletiva ou
propriedade estatal; etc; c) tomam-se como superiores e verdadeiros nessa
exigência de oposição e binária, quase sempre, a um dos elementos de cada par
de opostos, sendo secundários, inferiores e contingentes os segundos ( por
exemplo o masculino superior ao feminino; a propriedade privada superior a
qualquer outra forma de propriedade; o universal acima do particular, etc.) d)
finalmente, nos é exigido escolher entre um ou outro elemento de cada par de
opostos ( ou somos universalistas ou somos particularistas, ou estamos a favor
da ciência ou somos inimigos da ciência ao tentar defender e recuperar outras
formas do saber).
Esta técnica fragmentadora, dualista e polarizadora foi
também destacada tanto pelo pensamento feminista em sua crítica à cultura
patriarcal, como pelo pensamento descolonial ou pós-colonial, quando acusa a
dinâmica imperial e colonizadora do Ocidente, que divide o mundo em dualismos
em torno do par nós/eles, supervaloriza os qualificativos do primeiro e
desqualifica os segundos ( as culturas não ocidentais).[11]
A respeito da democracia, o princípio da separação se
expressa através dos pares democracia representativa/democracia participativa
ou democracia indireta/ democracia direta; poder estatal/poder cidadão; poder
constituinte/ poder constituído; formas, procedimentos e instituições/
conteúdos, sujeitos e ações cidadãs. No geral, a democracia representativa ou
indireta costuma apresentar-se como o expoente máximo da democracia,
desvalorizando a democracia direta ou participativa ao considera-la como seu
expoente natural ou como um apêndice específico de menor importância, sem que
sobre opção alguma para possíveis combinações complementares, dialógicas e
equitativas. Um dos principais argumentos que se arguem é que a democracia
representativa é funcionalmente mais operacional, sendo a democracia direta um
expoente de caos, desordem e inoperatividade.
Esta democracia entendida como o poder do povo, também se
camufla com as instituições estatais e representativas. A escolha de
representantes pelo povo acaba por tirar-lhe o poder, para somente ser exercido
pelo único poder válido: o estatal. A cidadania somente manda simbolicamente,
já que a partir de seu esvaziamento de conteúdo, todo o poder político é
outorgado às instituições representativas e do Estado.
Nesta mesma linha, o poder constituinte se opõe ao poder
constituído, que é o poder institucionalizado e formalizado por meio de normas,
leis, procedimentos, órgãos e instituições. Por alguma magia, o poder
constituinte desaparece e, ao estar todo regrado e outorgado, passa a só
possuir legitimidade democrática aquele que esteja blindado pelas formas e
pelas normas constitucionais de regulação. Finalmente, os atores sociais, os
sujeitos e suas ações diárias, enquanto cidadãs e cidadãos submetem-se aos
ritmos e aos tempos marcados pelos procedimentos eleitorais. O formal se opõe
ao material e sobressaem-se as formas sobre os conteúdos e práticas de sujeitos
múltiplos.
b)
O princípio da redução
Através da redução
destaca-se um elemento dos muitos que existem na realidade que acaba por ser
considerado como o único real. Tal elemento é isolado e separado do resto e
considera-se que funciona por si mesmo e que é autossuficiente. Acaba- se por
confundir a parte pelo todo. No mundo do direito, por exemplo, isto ocorre
quando se pensa que só a norma é importante na realidade jurídica, ou quando se
considera que o Direito pode viver e se reproduzir fora do contexto
sociocultural e político-econômico em que se move. Outro caso de reducionismo
se dá quando todas as parcelas da vida se reduzem às relações mercantis e a uma
exclusiva tradução monetária, o dinheiro.
Em relação a democracia
ocidental a redução aparece, por exemplo, com a crítica que o chileno e
analista político Helio Gallardo realiza ao que denomina” efeitos de ideologização”
ou “politicismo”, que consiste em mecanismos de diminuição e fixação de
determinados estereótipos e reduções que, por socializados, nos parecem
naturais e evidentes. Além disto, podem afetar nossa compreensão da vida social
e determinar mecanismos de inserção inadequados ou disfuncionais para nossos
propósitos[12].
Encontram-se casos significativos quando se pensa que a política e a democracia
se circunscrevem à ação de determinados indivíduos carismáticos e exepcionais;
ou quando se reduz o político, a política e a democracia a algumas instituições
privilegiadas, como podem ser os partidos políticos ou a figura das eleições. O
exemplo mais grotesco de simplificação é aquele em que só representam a
democracia o voto e as eleições.[13]
Nesse sentido, o filósofo costarriquense Eduardo Saxe-Fernándes nos contava, há
alguns anos atrás, uma anedota para explicar o reducionismo da expressão
democrática ao voto e às eleições periódicas, perguntava a seus alunos se
desejariam fazer amor apenas uma vez a cada quatro ou cinco anos.
Evidentemente, a classe toda respondia que não, que isso era uma loucura.
Saxe-Fernándes, imediatamente comentava com elas/eles que o mesmo sucede com a
democracia, no sentido de nos obrigarem a ser democratas e a praticar
democracia uma vez a cada quatro ou cinco anos, unicamente quando votamos nas
eleições. Os efeitos se manifestam na dupla intenção de, por um lado, provocar
a desmobilização da sociedade civil e, por outro, o ocultamento da dominação
socioeconômica e da existência de oposições e assimetrias entre as forças e os
atores sociais. Pela redução da democracia às eleições, não vigora a
participação cidadã e social que fica fora do tempo e do espaço dos anúncios
eleitorais.[14]
Seguindo a Eduardo Saxe-Fernandes, se trata de fazer mais amor e de fazer mais
democracia, e vizualizar que o político se desenvolve em todas as esferas do
social e não exclusivamente na estreiteza da cultura do voto.
c) Os
princípios de abstração e idealização
Por abstração entende-se a omissão teórica e descritiva
seletiva que deixa de lado alguns elementos ou predicados considerados
importantes. É uma especificação do mecanismo da redução, mas que se realiza
por meio dos marcos categóricos, as teorias, os conceitos e as instituições com
as quais nos regemos e nos orientamos pelo mundo. A teoria com a qual se
interpreta a realidade é abstraída e substituída por seus conceitos e ideias. A
teoria com a qual se interpreta a realidade é abstraída e substituída por seus
conceitos e ideias. A realidade é sacrificada a favor de uma teoria ou
instituição e acabam-se por eliminar os contextos, as relações humanas, as
especificidades e a temporalidade dos problemas e, desta forma, as condições de
existência das pessoas.
Junto com a abstração está a idealização, que consiste em
uma adição seletiva de algumas características que podem não estar presentes
nos agentes reais ou nos próprios elementos que conformam a realidade. O
pensamento ocidental lógico e científico utiliza ambos os meios de
conhecimento. O problema e o questionamento de seus usos têm de ser feitos
quando deixamos de compreender e de nos preocupar tanto com os elementos que
são eliminados e ficam de fora, quanto com os que se somam e se incluem.
Com as abstrações um ou
vários elementos podem ser omitidos, tais que, apesar de serem importantes e
decisivos, são qualificados como insignificantes, acessórios e secundários, até
o ponto de poderem ser ignorados, como pode ser ignorada a vida de alguns ou
muitos seres humanos. Já nas idealizações, é tão grande e tão exigente a adição
introduzida que seu grau de perfeição é impossível de ser atingido na realidade
( por exemplo, uma sociedade perfeita desenvolvida pelo mercado ou o estado
perfeito, ou qualquer outra mediação, incluindo alguma qualidade do ser humano
– enquanto indivíduo racional, vencedor e competitivo). O problema é que não
existe consciência desta impossibilidade e esta realização é perseguida as
margens do realmente necessário.
Totaliza-se esta realização como um fim que tem de
ser alcançado de qualquer maneira, incluindo-se nisto o sacrifício de tudo
aquilo que se interpreta como uma distorção ou um obstáculo, mesmo que seja a
própria condição humana e sua ação de resistência.
A respeito das teorias e
conceitos sobre democracia, um efeito manifesto de abstração e idealização
sucede quando terminamos convencidos de que as teorias, filosofias e os
conceitos que utilizamos para interpreta-la e refletir sobre ela, são
superiores a realidade prática, diária e cotidiana dos processos
sócio-históricos de luta e de democratização que são os que realmente produzem
o que é ou o que não é democracia. O veremos a seguir dividido com a distinção
entre os conceitos de “democracia” e “processos de democratização” elaborados
por Helio Gallardo. Valorizar demasiadamente os instrumentos analíticos com que
interpretamos a vida política provoca um sacrifício da realidade. Se esta não
se adapta às teorias, pior para ela. As consequências de silenciamento,
eliminação e ocultamento de múltiplos fatores que formam parte da participação
cidadã são manifestas.
Na linha entendida como o
princípio da redução, como complemento, o ideal do voto como única expressão da
democracia é outro exemplo de abstração e idealização. Os atores sociais e os
contextos históricos, econômicos, políticos, culturais, etc, de conflito
desaparecem. Termina-se por despolitizar a democracia enquanto processo
sócio-materialmente produzido. A caça do voto como ideal obsessivo de perfeição
provoca a conversão da política em uma única consecução de cotas de poder e das
eleições em operações de mercado. Em torno disto, a imagem do agente e ator
político, como os partidos, personalidades ou o governo, alcança uma maior
significação no imaginário social, mantendo-se no superficial e aparente,
relegando o conteúdo dos discursos, as ideias, as ações ou práticas e os
debates, além do sentido e da consciência dos interlocutores políticos com quem
discute.[15]
O quantitativo (o número de votos) passa a ser mais importante que o
qualitativo (os conteúdos dos programas políticos e das reivindicações e
demandas populares).
Como ator coadjuvante, a superexposição pelos meios de
comunicação, que participam deste espetáculo do mercado e do cenário político,
gera um efeito de naturalização sobre a onipresença dos protagonistas políticos
oficiais na cotidianidade. Os políticos,
mesmo que possam decepcionar, têm de ser líderes perfeitos que atuam com uma
intenção messiânica e idealista.
Desta maneira, a forma e o procedimento na democracia
encontram-se absolutizados frente à “contaminação” e as “impurezas” das
propostas e reivindicações sociais e das ações dos sujeitos cidadãos (podem ser
indivíduos, organizações, movimentos sociais).
Finalmente, outro fenômeno de abstração assinalado por
Helio Gallardo, aparece por meio da invizibilização do fenômeno da
internacionalização e a transnacionalização da assimetria das decisões
políticas que se desenvolvem em âmbito nacional, e também a redução que
abstrai, até que reduz a política a analise e compreensão do local e do
nacional, e o contexto internacional aparece como algo externo que, mero marco
ou moldura, acompanha aos processos internos dos estados. Para isto, são
utilizados como referenciais conceito/valores como soberania, cidadania,
consenso, responsabilidade de governo, etc. sob o único protagonismo e única
responsabilidade do Estado-nação. A ordem econômica globalizada e alguns de
seus atores como a EU, o FMI, ou o Banco Mundial, só incidem marginalmente e o
fazem unicamente de maneira central quando tomam medidas supostamente positivas.[16]
3. Propostas
para uma democracia ampliada
Frente a esta perspectiva restritiva e estrita de
democracia, faz-se necessário ampliar o campo de visualização e incorporar mais
elementos que são parte da ação democrática em todas as esferas do social. Para
isto, tem de se saber distinguir alguns conceitos e abrir os horizontes de
sentido para contextos mais ricos e complexos.
Em primeiro lugar sublinharemos uma serie de distinções
conceituais que nos ajudam a enfrentar o paradigma da simplicidade. Em seguida,
utilizaremos a técnica da classificação binária empregando dualismos
relacionados com a ideia de democracia, mas também complexizá-la, seguindo o
espírito dos princípios dialógico e de recursividade organizacional indicados
por Edgar Morin.
- Neste primeiro bloco de distinções conceituais, segundo
Helio Gallardo, é preciso distinguir entre, de um lado, “o político”, “a
política” e “o cenário político” e, por outro, entre “processos de
democratização” e o conceito de “democracia”.[17]
+) A primeira distinção, que é
analítica, pretende combater conceitualmente a frequente redução e focalização
do fenômeno político que assinalamos acima:
“O” político refere-se a qualquer relação humana entre
duas ou mais pessoas e alude ao âmbito da sociabilidade fundamental. Esta está
dada pelas relações e interações, quer de cooperação ou reconhecimento mutuo e
acompanhamento, quer de hierarquias, assimetrias e dominações que se
estabelecem entre os seres humanos para produzir suas condições de existência
material e espiritual, tanto individuais como grupais ou coletivas. A
sociabilidade fundamental desenvolve-se na divisão social do trabalho e nas
instituições que a condensam (mundo da produção e da distribuição, mundo
econômico, das relações mercantis, propriedade privada...) e por formas e
funções sociais da família.[18]
A sociabilidade em matéria de democracia tem expressão na
existência cotidiana, geralmente com expressões negativas: os gestos sexuais, o
olhar que rebaixa o trabalhador manual, a grosseria, a ansiedade e indiferenças
no ambiente urbano, a despreocupação pela manutenção dos espaços públicos, a
proliferação de uma agressividade quase delinquente nas ruas e nos meios de
comunicação de massa, o racismo, são expressões da deterioração que se costuma
internalizar e institucionalizar como padrões normais e regulares de
comportamento e identidade.
Parte-se da consideração do político como onipresente,
como um fator de reintegração ou rearticulação das diversas e desencontradas
práticas que constituem o social. Tem de se evitar simplificações e
reducionismos. O caráter da sociabilidade que se desdobra no âmbito do político
pode nos dar uma ideia aproximada das dinâmicas de dominação ou de emancipação
em cada contexto social: pode haver corrupção, lutas de poder depreciadoras,
discriminação, hierarquias ou solidariedades, horizontalidades, distribuição do
poder e reconhecimentos mútuos.
.
Enquanto “a política”, aqui nos referimos às instituições
e institucionalizações que têm como referencial central o Estado e que se
encarregam da reprodução da ordem social, da ordem pública e do interesse
público. Os aparatos armados (polícia), a escola, a legislação penal, o voto ou
as eleiçõs políticas, as assembleias legislativas, o governo de uma nação, os
meios de comunicação, são exemplos de instituições. A credibilidade ou
legitimidade destas são exemplos de institucionalizações que podem fomentar ou
degradar a política (corrupção, impunidade). Geralmente, a partir do paradigma
da simplicidade, “o político” se inclui e se introduz dentro “da política”,
minguando diminuindosua
multipresencialidade.[19]
Finalmente, o “cenário político” faz referência aos
ambitos ou cenários que constituem, com sua prática, os atores e protagonistas
políticos. Os partidos políticos, por exemplo, criam cenários de “o político”
para “a política”. Costumam ser maquinários eleitorais e mercados de transação
de privilégios a partir de posições de poder.
b) A segunda distinção
terminológica centra-se no conceito dos “processos de democratização” e “a
democracia”. Os primeiros estão protagonizados por forças sociais e podem ser
vislumbrados através de lutas em instituições democráticas, regimes
democráticos e uma cultura democrática.
Os processos de democratização são determinados histórica e socialmente,
assim como suas instituições e suas institucionalizações. Diferentemente, “a
democracia” faz alusão aos discursos sobre o conceito/valor “democracia”,
discursos estes que podem acompanhar ou culminar em alguma fase dos processos
de democratização. Refere-se a uma categoria que faz parte de um discurso
analítico, conceitual e também ideológico.[20]
O que existe em nossas sociedades são instituições
democráticas que condensam e expressam lógicas democráticas. As instituições
resultam do jogo de diversas forças sociais no marco de um Estado de Direito (
leis e normas de aplicação universal). Podem materializar-se também em
instituições de sociabilidade humana (família, local de trabalho, igrejas, etc.
Não somente em instituições estatais ou com dispositivo estatal). Por isto os
processos de democratização fazem alusão a espiritualidades democráticas. São
os seres humanos, as forças sociais e suas lutas, os principais protagonistas
dos processos de democratização, fato e dado que se oculta e invisibiliza. O que
teorizamos sobre isto e os valores que idealizamos são um suporte e um
complemento deste complexo processo sócio-histórico de produção.
Em relação aos dualismos, vamos refletir de forma breve
sobre os pares: a) democracia e forma de governo/ democracia como modo de vida
e existência; b) participação/representação; democracia formal/ democracia
material (e em relação a outras esferas não estatais); c) identidade
democrática e identificações democráticas; e d) governantes/ governados, no
sentido do caráter dado ao exercício do poder se, se manda para obedecer ou se
manda para que os demais obedeçam.
a) Quando falamos de democracia ou de processos de
democratização, é importante definir se nos referimos somente a uma forma ou
modo de exercer o governo ou se expressamos uma maneira de ser na própria vida
e um estilo de existência que não se reduz somente ao mundo do público, mas
também a todos os ambitos de nossa vida: o mundo familiar, do trabalho, da
produção e da distribuição dos bens, etc.
b) Democracia pode implicar
não somente em mecanismos de representação, mas também em expressões de
participação ativa e direta. Reduzir a democracia ao primeiro caso implica em
um processo de delegação extremo que termina por desempoderar os sujeitos com a
conseguinte articulação de uma cultura de cidadania servil, utilizando a
expressão de Juan Ramón Capella.
c) Falar de democracia também implica no modo como nos
identificamos e construímos nossas identidades democráticas. Não é a mesma
coisa que, como cidadãs/os soberan@s, sejamos nós mesmos quem dotemos de
caráter as nossas próprias produções, tanto em um sentido étnico, cultural,
político, ideológico, sexual, econômico ou libidinal, ou que, pelo contrário,
sejam outros quem decidam por nós e que nos identifiquem externamente e não
através de processos nos quais sem que tenhamos o controle total, sejamos autoprodutores dos
significados e re-significados do mundo político.Não é a mesma coisa uma
identidade internamente produzida que uma identificação externa, hierárquica e
heterônoma, que vem de fora e que elimina um protagonismo soberano.
d) Finalmente, o caráter dado ao exercício do poder é
fundamental na democracia. Seguindo a filosofia zapatista, tem de se ter claro
se quem manda, manda para obedecer, com a intenção de que os governantes sejam
responsáveis frente os governados e o processo de governo seja alternado, ou se
quem manda, manda para que os demais obedeçam, sob uma lógica ambiciosa de
controle e centralizadora, que só pretende manter estruturas de desigualdade e
de hierarquias onde uns estão mais capacitados que outros e que, além disso,
têm mais valor e são mais importantes.
4.
Sobre Direitos Humanos
Se até agora nos centramos no conceito de democracia, a
seguir nos deteremos na ideia comum e restrita que costumamos ter de direitos
humanos.
É quadro típico, tópico e clássico ter como pacífica a
separação que existe entre o que se diz e o que se faz em matéria de direitos
humanos. Quase todo o mundo tem na cabeça a ideia de que é muito diferente a
teoria e a prática sobre os direitos humanos. Este abismo é considerado
indiscutível e muito difícil de superar. Muito se escreveu e muito se disse
sobre as possíveis causas desse distanciamento, mas poucos são os estudos que
partem da premissa de que talvez esta separação entre o que é dito e que é
feito, entre o plano do ser e do dever ser, resida na nossa própria maneira de
pensar os direitos humanos. Bem possível é que sob uma cultura interessadamente
conformista, indolente, acomodada e passiva, convém entender direitos humanos a
partir destes planos aparentemente tão distintos. É como se existisse uma
cultura de impotência que, com a desculpa desse abismo entre o dito e o feito,
adota a atitude de continuar deixando as coisas tal como estão. Possivelmente nos
convém manter esta diferença para consolidar e reforçar uma cultura de direitos
humanos estreita demais, reduzida e simplista que, tanto na superfície quanto
no fundo convém a quem realmente prefere conviver descumprindo, destruindo e/ou
ignorando os direitos humanos.
Se analisarmos mais a fundo, institucionalmente nos é
ensinada uma ideia tão restringida e tão reduzida de direitos humanos que no
fim acaba por desempoderar a todos os seres humanos, na mesma linha marcada por
um conceito estreito e estereotipado de democracia, porque com essa concepção
oficializada e estendida não conseguimos reconhecer realmente nossa capacidade
de dotar de caráter as nossas próprias produções culturais, políticas, étnicas,
sexuais-libidinais, econômicas e jurídicas com autonomia, responsabilidade e
autoestima, em todos aqueles espaços e lugares sociais em que se forjam as
mesmas relações humanas.
Esta separação entre a teoria e a prática que tomamos
como natural e indiscutível é uma das razões que justificam a indolência e a
passividade no momento de construir dia a dia, em todos os lugares sociais,
direitos humanos. Seguramente aí é que está a armadilha: ao considerar-se como
natural, normal e indiscutível a distância entre o praticado e o dito, se está
consolidando e fortalecendo uma forma de entender e praticar a convivência humana sem mais pretensões, que interessa a
quem mais se beneficia que isso seja assim.
Da mesma forma, a pouca cultura que existe sobre direitos
humanos, é excessivamente formalista, e acaba por ser extremamente reduzida,
insuficiente e estreita e, de maneira voluntária ou involuntária, acaba por
reforçar e tornar hegemônica essa separação entre o que se diz e o que se faz
em matéria de direitos humanos. Por esta razão, faz-se necessário assinalar algumas
pistas para articular e defender uma concepção muito mais complexa, relacional,
sócio-histórica e holística, que priorize as próprias práticas humanas, que são
as que realmente fazem e desfazem, constroem e desconstroem direitos humanos e
sobre as quais se inspiram e elaboram as teorias, da mesma forma que acontece
com os processos de democratização explicados anteriormente.
Isto, consciente e inconscientemente, acarreta varias
implicações ou consequências, que vamos ressaltar a partir das explicações de
Helio Gallardo. Para este autor direitos humanos fazem referência ao menos a
cinco elementos: a) a luta social; b) a reflexão filosofica ou dimensão teórica
e doutrinária; c) o reconhecimento jurídico-positivo e institucional; d) a
eficácia e efetividade jurídica; e e) a sensibilidade sociocultural.[21]
A partir destes elementos
diferentes, observaremos como nosso imaginário oficial e mais difundido só se
fixa em alguns deles: a dimensão normativa e institucional; a dimensão
teórico-filosófica e a eficácia jurídico-estatal, desconsiderando ou dando
pouca importância a âmbitos fundamentais como a luta social (que quando se
reconhece é de maneira muito pontual), a eficácia não jurídica e a eficácia
jurídica não estatal, assim como a cultura e a sensibilidade popular, que são
básicos para poder entendê-los melhor e colocá-los em prática de forma mais
coerente. Estes insumos infravalorizadospodem
nos permitir superar e/ou enfrentar essa separação que sistematicamente existe
entre o que se diz e o que se faz sobre direitos humanos e que impedem que nos
desenvolvamos como sujeitos e de forma autônoma.
A respeito dos elementos supervalorizados ou que, fazendo
parte de uma estrutura mais complexa, convertem-se no todo ignorando o resto,
tem de ser dito o seguinte:
- Comunmente e a partir de um plano teórico, os direitos
humanos costumam ser associados e conhecidos pelo que, ao longo da história,
nos disseram e nos dizem determinados pensadores ou filósofos. Autores como
John Locke, Francisco de Vitória, Rousseau, Hobbes, Kant, Norberto Bobbio,
Ferrajoli, Habermas, são algumas das mentes lúcidas que falaram sobre direitos
humanos. O problema consiste não nas iluminadoras reflexões que sobre direitos
humanos nos aportam, mas sim em pensar que são eles, os filósofos ou
especialistas, quem os criam, esquecendo o detalhe de que direitos humanos são
produções sócio-históricas geradas por atores sociais a quem e sobre quem se
teoriza.
- Mesmo assim, tal como já se assinalou, consiste em
faceta importante dos direitos humanos em seu processo de institucionalização e
reconhecimento normativo tanto em escala nacional como internacional. Quando
movimentos sociais como o da burguesia no processo de afirmação das sociedades
modernas, ou como o movimento operário no século XX com seus antecedentes no
passado, se levantaram para reivindicar espaços maiores de liberdade e
denunciar distintas formas de excesso de poder ( econômico, cultural, étnico,
libidinal, etc.), o objetivo do reconhecimento constitucional e jurídico se fez
crucial para objetivar suas demandas. Daí a importância que tem a dimensão
jurídico-positiva dos direitos humanos, mas, ao dar-lhe importância excessiva
provoca, como veremos, uma eficácia minimalista, reduzida e insuficiente em
relação ao numero de violações que todos os dias acontecem no mundo e o tipo de
garantias procedimentais que se estabelecem como resposta.
Além disto, junto com o reconhecimento normativo, a
eficácia e a efetividade jurídica dos direitos humanos costuma ser o principal
recurso utilizado para garanti-los. A existência de tribunais de justiça que
possamos buscar para fazer denúncias e de estados de Direito para que os
direitos fundamentais sejam protegidos não é algo que tenha de ser desprezado,
pelo contrário. Porém centrar nosso imaginário somente nestes três elementos,
de forma a superdimensiona-los, tem efeitos nocivos para a maioria da
humanidade. Para demonstrar o que estamos dizendo, basta nos fixarmos neste
exercício de reflexão: Quantas violações de direitos humanos ocorrem todos os
dias no mundo ou nos estados que se intitulam de direito? Com certeza são
muitíssimas, incalculáveis. Quantas destas violações são atendidas
judicialmente, com sentença favorável e, além disso, efetiva? Sem dúvidas,
sendo generosos, a proporcionalidade é de 99,9999% de violações para 0,0001%.
Portanto algo ocorre quando nosso imaginário caminha por paisagens tão
limitadas. Ao observar bem, torna-se curioso comprovar que circunscrevemos
direitos humanos a uma simples reivindicação ou demanda judicial interposta
ante os tribunais de justiça, uma vez que os mesmos tenham sido violados. Logo
costumamos defender uma concepção pos-violatória de direitos humanos ignorando
ou fazendo pouco caso da dimensão pré-violatória. Fica a impressão de que os
direitos humanos só existem quando já foram violados, não importando aquela
dimensão da realidade que os constrói ou distroi antes da atuação do Estado.
Desta forma, o fato de que os direitos humanos se reduzam
a normas, instituições e teorias, provoca uma espécie de delegação do conjunto
dos mortais que se centra no protagonismo adjudicado aos funcionários da
administração de cada Estado e aos especialistas encarregados de interpretar as
normas. Também se costuma auxiliar os ativistas de direitos humanos que atuam
na maioria das vezes, de maneira paternalista. Com isto se cria uma situação de
subordinação das pessoas e dos cidadãos às decisões e às ações de quem
representa os poderes legislativo, executivo e judiciário ou uma ONG mais ou
menos altruísta.
Diante deste panorama e após a constatação desta
evidência, pode-se perceber que algo ocorre quando nosso imaginário se
movimenta dentro de um dos esquemas que não questionam as limitações de uma
forma de pensar e nem de entender direitos humanos. O resultado é que nos conformamos com que
sejam os especialistas do Direito, os operadores jurídicos e, em último caso,
os tribunais de justiça de âmbito nacional ou internacional que nos digam quais
são os nossos direitos e, além disto, resulta também que os superdimensionamos
e somente nos preocupamos com a etapa ou dimensão pós-violatória dos mesmos,
que fica circunscrita a esfera de sua reivindicação judicial, uma vez que já
tenham sido violados. No fim, o que estamos consolidando é uma cultura de
direitos humanos simplista, deficiente, insuficiente e estreita.
5. Uma proposta de direitos humanos ampliada e
complexa
Frente a esta concepção
excessivamente jurídico-positiva, estatal, formalista, pós-violatória e
delegatória, embebida sob uma cultura atomista e individualista, vamos tentar
oferecer neste artigo, partindo da teoria, algumas pistas para a obtenção de
uma noção mais complexa de direitos humanos que, se constroem processual,
relacional e dinamicamente, a partir de práticas sociais e ações humanas que
empoderam os sujeitos. Seguindo os aportes teóricos do filósofo e analista
político chileno Helio Gallardo, direitos humanos têm como referencial básico a
vocação de autonomia dos sujeitos sociais como matriz de autonomia dos
indivíduos ou pessoas. Guardariam relação com a capacidade que o ser humano tem
e deve ter como sujeito, para dotar de caráter suas próprias produções em
entornos que não domina totalmente e, também, estariam articulados e com uma
disposição de lutar contra qualquer situação que impossibilite esta capacidade
de criar, significar e ressignificar as instituições socialmente construídas.
Para Helio Gallardo, “sujeito” quer dizer colocar-se em condições sociais
individuais de apropriação de uma existência a qual dê caráter ou sentido a
partir de outros, com outros, para outros e para si mesmo, e de conseguir
comunicar com autoestima esta experiência de apropriação. Da mesma forma,
entende por “autonomia” a possibilidade dos seres humanos de passar através de
ações, desde experiências de menor controle (ou alienadas) a experiências de
maior controle ( libertadoras) por parte de quem as vive. Por isto a
necessidade de recuperar outras dimensões ou elementos dos direitos humanos,
como por exemplo:
- Em primeiro lugar o âmbito
que da origem aos direitos humanos e os mantém vivos: a luta e a ação social
Direitos humanos têm a ver com processos de luta pela abertura e consolidação
de espaços de liberdade e dignidade humanas. Concretamente podem ser concebidos
como o conjunto de práticas sociais, simbólicas, culturais e institucionais que
têm reação contraria aos excessos de qualquer tipo de poder que impeçam os
seres humanos de constituir-se como sujeitos. Os movimentos sociais através da
história, partindo de racionalidades, imaginários e demandas distintas, tentam
ter o controle sobre seus entornos, entrando em conflito com outros
imaginários, outras racionalidades e outras reivindicações que, por diversas
razões, acabam fazendo-se hegemônicas. Isto provoca que as lutas não
hegemônicas possam terminar invisibilizadas, silenciadas, eliminadas ou
resignificadas a partir de quem detém o poder. Não obstante, as lutas continuam
existindo e podem surgir outras novas e novos movimentos que questionem o
oficial e insuficientemente institucionalizado. No contexto moderno, o problema
reside no fato de ter sido o imaginário burguês o único que impulsionou o resto
de todos imaginários (operário, feminista, libidinal, étnico, ambiental...),
estabelecendo um traje que todos deveriam usar e moldando uma figura a qual
todos os demais deveriam adaptar-se, impedindo-se a possibilidade de construir
novos trajes e novas figuras.
- Em segundo lugar, de maneira muito relacionada com o
tópico anterior, para fazer efetivos os direitos humanos, as atuações humanas e
a sensibilidade popular, para reconhecê-los aludem a uma dimensão
pré-violatória dos mesmos que nada tem a ver com a dimensão jurídica e estatal.
Portanto, existe uma eficácia não jurídica que tem muito a ver com a
sensibilidade sócio-cultural, ou grau de aceitação e o modo como os direitos
humanos são assimilados, significados, ressignificados e entendidos. Mesmo
assim, existe uma dimensão jurídica não estatal que determinados coletivos como
os povos indígenas utilizam a partir de lógicas emancipadoras.[22]
- Em terceiro lugar, é decisivo perceber que realmente
são nossas relações e práticas ou tramas sociais tanto jurídicas como não
jurídicas que, em cada momento e em todo lugar, nos dão a justa medida se
fazemos ou não fazemos direitos humanos, se estamos construindo processos a
partir de relações baxodinâmicas de
reconhecimento, respeito, e inclusão ou através de dinâmicas de império,
dominação e exclusão. Definitivamente, se realmente estamos contribuindo para
que os direitos humanos existam ou não existam em nossa cotidianidade. Daí a
necessidade de refletir permanentemente sua dimensão política, sócio-histórica,
processual, dinâmica, conflitiva, reversível, e complexa. Portanto, tem de se
apostar numa noção sinestésica de direitos humanos que nos afaste da anestesia,
na qual os cinco ou os seis sentidos atuam simultaneamente, vinte e quatro
horas por dia e em todo lugar. São práticas que se desenvolvem diariamente, o
tempo todo e em qualquer lugar, e não se reduzem a uma única dimensão
normativa, filosófica ou institucional, nem tampouco a um único momento
histórico que lhes dá uma origem.[23]
Direitos humanos guardam mais relação com o que fazemos em nossas relações com
nossos semelhantes, seja sob lógicas ou dinâmicas de emancipação ou de
dominação, que com o que nos dizem determinados especialistas ( mesmo que
também repercuta em nosso imaginário e em nossa sensibilidade sobre direitos
humanos).
As dimensões formal, institucional e doutrinária devem
complementar-se com o âmbito onde são os próprios seres humanos através das tramas
sociais que os constituem como sujeitos ou como objetos quem podem ou não,
diariamente, construir e reconhecer direitos de maneira solidária e recíproca,
aí está a clara dimensão política quem têm, além da conexão que possuem com a
necessidade de que o povo ganhe poder e o exerça de forma emancipadora.
A cultura sobre a qual se
assenta nossa defesa dos direitos humanos ou é mínima ou é anestésica, ou por
sua ausência não potencializa as dimensões não jurídicas de sua articulação,
reconhecimento e de cumprimento prévio a sua violação (pré-violatórias) que se
desenvolvem em todos os espaços sociais (íntimo, doméstico, de produção, de
mercado, de cidadania, de comunidade, etc.).
Por estas e outras razões
pretendemos destacar a acentuar os limites desta posição excessivamente
normativista e formalista. Se não temos claro que são nossas ações diárias e
cotidianas em todos os âmbitos sociais onde nos movemos, as que articulam
espaços de reconhecimento de dignidade, sempre adotam uma postura delegatória e
passiva, que produzirá uma efetividade circunscrita, mínima e azarosade direitos humanos.
Tem de se esclarecer, para
não provocar equívocos, que com esta denuncia não estamos negando a importância
que têm os ordenamentos jurídicos, os estados constitucionais de Direitos e os
sistemas de garantias estatais dos direitos fundamentais. Está fora de qualquer
dúvida que a necessidade das dimensões filosóficas, jurídico-positivas e de
eficácia estatal. São conquistas humanas que tem de se consolidar e reforçar, sem
cair em eurocentrismos ou ocidentalismos, mas não são estas as únicas e
exclusivas formas de garantia contra os diferentes excessos de poder. São
necessárias, porém insuficientes, por muitas razões. Está clara a necessidade
de melhorar e fortalecer o papel do direito e dos sistemas de proteção dos
diretos humanos tanto a nível nacional como internacional, assim como é
imprescindível reconhecê-los institucionalmente, mas não há que se dar para
esta dimensão normativa o protagonismo único e exclusivo. Repetimos: Mesmo que
sejam importantes e necessárias as dimensões filosófica, institucional e de
efetividade jurídico-estatal dos direitos humanos, são insuficientes. Por esta
razão tem de se ampliar o campo de visão a outras parcelas.
Não se trata somente de incrementar
uma consciência e uma cultura jurídica de proteção, mas também, além disso,
potencializar uma cultura de direitos humanos em geral, que acentue a dimensão
pré-violadora a partir de onde se constroem-destroem e se
articulam-desarticulam, porque na realidade, somos nós, os seres humanos, do
lugar que ocupamos no mundo e da maneira como nos movimentamos, quem,
utilizando a via jurídica, participamos dos processos de construção ou
destruição dos direitos humanos, sejamos ou não sejamos juristas.
Quanto maior seja essa cultura sobre direitos humanos,
menores são as demandas que tenham que passar pelos tribunais. Não é o mesmo
promover direitos humanos fora e dentro do âmbito jurídico, seja como juiz ou
fiscal, advogada, pai, mãe, filho, filha, empresário, empresária, professora,
médico, porteiro, taxista, jovem, velho, etc., do que considera-los, como se
fossem fatos consumados, que ao não serem observados externamente, na
cotidianidade, podem ser garantidos unicamente no interior do mundo do direito.
Pelo contrário, em ambos os lugares se fazem e se desfazem direitos humanos.
6.
Conclusões
Neste artigo nos limitamos a trazer luz a alguns
dos limites e às deficiências que possuem tanto o conceito de democracia como o
de direitos humanos predominantes em nosso horizonte ocidental, simbólico e
cultural de sentido. Ambos os conceitos operam através do paradigma da
simplicidade e provocam uma série de efeitos e consequências negativas, tanto
para o exercício da cidadania e a constituição de autêntic@s cidadãs/os e
sobena@s como para a expansão e a consolidação de uma autêntica cultura
sensível de direitos humanos, que funcione o tempo todo e em qualquer lugar.
Sem depreciar ou subvalorar os aspectos positivos da democracia e dos direitos
humanos oficialmente estabelecidos, indica-se a necessidade de ampliar a
complexizar as duas ideias institucionalizadas, para estabelecer uma dinâmica
mais profunda, ativa e participativa da cidadania, mais aberta à construção de
espaços de reconhecimento emancipadores da humanidade.
[1] Sobre
o principio da agencia humana, sobre o conceito de direitos humanos e sobre o
conceito de democracia, ver Helio Gallardo, Teoría crítica: matriz y
posibilidad de derechos humanos, Francisco Gómez, Murcia, 2007; Democratización
y democracia en América Latina, Departamento de Publicaciones de la
Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí, 2007; e Elementos
de política en América Latina, DEI,
San José, 1989.
[2] Nesse sentido,
partimos com muita afinidade do conceito de “demoarquía” utilizado por Rafael
Rodríguez Prieto. Ver seus livros Ciudadanos soberanos, Almuzara,
Córdoba, 2005; Construyendo democracia: una propuesta para el debate,
Aconcagua libros, Sevilla, 2005.
[3] Ver
Joaquín Herrera Flores, Los derechos humanos en la Escuela de Budapest,
Tecnos, Madrid, 1989; y David Sánchez Rubio, Repensar derechos humanos,
Mad, Sevilla, 2007.
[4] Edgar Morin, Introducción al pensamiento complejo,
Gedisa, Barcelona, 2001.
[5] Ver Marcos Roitman, Democracia
sin demócratas, Sequitur, Madrid, 2011.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] um ponto de vista epistemológico, ver a racionalidade
metonímica na cultura ocidental em Boaventura de Sousa Santos, Una
epistemología del sur, Siglo XXI, México D.F.-Madrid-Buenos Aires,
2009.
[10] Edgar Morin, Introducción al pensamiento complejo.
[11] Neste sentido, ver
Boaventura de Sousa Santos, op. Cit.; y Edgar Lander (org.), La colonialidad
del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, CLACSO, Buenos Aires, 2000.
[12] Ver Helio Gallardo, Elementos de política en América
Latina.
[13] Ídem; y Democracia y democratización en América Latina.
[14] Helio Gallardo, op.
cit.
[15] Idem.
[16] Helio Gallardo, Elementos de política en América Latina.
[17] Helio Gallardo, Democracia
y democratización en América Latina.
[18] Idem.
[19] Idem.
[20] Idem.
[21] Ver seus libros Política
y transformación social. Discusión sobre derechos humanos, Editorial Tierra
Nueva, Quito, 2000; Siglo XXI: militar en
la izquierda, Arlekín, San José, 2005;
Siglo XXI: producir un mundo,
Arlekín, San José, 2006; e Derechos
humanos como movimiento social, Ediciones desde abajo, Bogotá, 2006.
O
conceito de direitos humanos entendido em uma perspectiva crítica e concebido
como “procesos de abertura e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana”
em grande parte o debemos a Joaquín Herrera Flores, recentemente falecido e
cuja marca difícilmente será apagada. Ver seus trabalhos em El vuelo de Anteo, Desclée de Brouwer,
Bilbao, 2000; e Los derechos humanos como
productos culturales. Crítica del humanismo abstracto, Los Libros de la
Catarata, Madrid, 2005
[22] Agora iremos nos deter
nas consequencias que impõem limites que
também tem o paradigma monista do Direito. Para uma visão a partir do
pluralismo jurídico ver Antonio Carlos Wolkmer, jurídico. Fundamentos de una nueva cultura del Derecho, Mad,
Sevilla, 2006
[23] Sobre a anestesia e
sinestesia em materia de direitos humanos, ver David Sánchez Rubio, Repensar derechos humanos.